A região de Ginza, numa fresca manhã de primavera, é uma vista fascinante. Ouve-se dizer que a economia do Japão está deprimida há anos, mas os turistas estrangeiros continuam a ser pegos de surpresa pela riqueza e o estilo exibidos neste segmento sofisticado do centro de Tóquio, com suas ruas majestosas, lojas de departamentos em camadas como bolos de casamento, ateliês de estilistas e butiques que vendem quimonos, cerâmica e doces esculpidos à mão.
Vim aqui para me encontrar com Hiroshi Mikitani, de 47 anos, líder de um grupo de empresários rebeldes que mudou radicalmente as práticas empresariais no Japão. Confiantes, voltados para a esfera internacional, ousados, até espalhafatosos, eles fundaram empresas e se valeram de técnicas empresariais - a tomada de controle hostil, a remuneração baseada no mérito, a concorrência acirrada e a autopromoção contumaz - alheias à cultura da corporação como família típica do Japão do pós-guerra.
Muitos no Japão consideram esse grupo desagradável, até antijaponês. Outros os encaram como modelo exemplar de um novo Japão. Alguns, como Takafumi Horie, um empresário de internet de aparência descuidada cuja carreira por pouco tempo deslumbrante terminou atrás das grades em 2007, quando ele foi condenado por fraude com valores mobiliários, penduraram as chuteiras. Mas Mikitani, que fundou em 1997 a Rakuten, a maior varejista on-line do Japão, prosperou. Ele detém quase 50% da empresa, um tipo de mistura japonesa entre Amazon e eBay, avaliada em US$ 14 bilhões. Segundo a mais recente lista dos mais ricos da revista "Forbes", Mikitani é a quarta pessoa mais rica do Japão, com um patrimônio líquido de US$ 6,5 bilhões.
O restaurante que ele escolheu fica acima do observatório do Ginza da loja de departamentos americana de luxo Barneys New York. Todo de estilo vistoso e de superfícies de madeira impecáveis, o Kaika é um estabelecimento de teppanyaki, onde a carne é grelhada num prato de ferro aquecido. Não sentamos no balcão para observar o trabalho do chef de uniforme branco, mas ao longo da nossa refeição pudemos ouvir o chiado do vapor do alimento tocando o metal ardente. Em vez disso, fomos conduzidos a uma sala privativa com uma mesa de madeira simples e paredes decoradas com papel de arroz e ripas de madeira escura como as barras da prisão mais chique do mundo.
Makitani chega. Ele está bronzeado, traz um corte de cabelo onerosamente descontraído e uma camisa desabotoada ao pescoço pouco costumeira entre empresários japoneses, mas mantém sua aparência apurada. Ele fala em inglês, língua que, segundo insiste, seus funcionários japoneses empregam como parte do que ele qualifica, de forma um tanto perturbadora, de "anglicização da Rakuten". Trata-se de uma política aplaudida por alguns no Japão e condenada por outros como uma tola farsa.
A última vez em que nos encontramos foi vários anos atrás. Na minha lembrança, ele estava acomodado numa grande bola (em lugar de uma cadeira) em seu escritório em Roppongi Hills, um volumoso complexo de arranha-céus construído durante o boom imobiliário de cerca de dez anos atrás. Roppongi Hills foi, por pouco tempo, a sede do jet-set de playboys de Tóquio e o foco de uma acalorada discussão sobre a infiltração de práticas predatórias de Wall Street.
Mikitani, que em 2005 foi rechaçado por uma tomada de controle hostil do canal de TV Tokyo Broadcasting System, deixou desde então o complexo de Roppongi. Não devido a constrangimentos em suas ligações com a boa vida, mas porque o espaço disponível ficou pequeno para as necessidades de sua empresa.
Pergunto-lhe se ele se sente parte de um clã de empresários anti-establishment, gente como Tadashi Yanai, o fundador, sem papas na língua, da marca de roupas Uniqlo, e Yoshikazu Tanaka, o bilionário diretor da Gree, empresa de jogos para telefone celular. "Comparativamente aos Estados Unidos, a lista de nomes é muito curta", comenta Mikitani quando esgoto os meus exemplos. "Precisamos criar mais. O que quero fazer é firmar uma moda, ser uma pessoa que dita a moda."
Ele fala com calma e tem modos ultrarrelaxados, mas sinto que está um pouco nervoso com a possibilidade de estar ou não adotando o nível correto de descontração para um almoço com o "Financial Times" (essa é a versão mais moderna das ansiedades japonesas sobre a profundidade com que devem se curvar). Digo que gostaria de tomar uma cerveja, e ele declara que também quer uma. Tiro meu paletó. Ele faz o mesmo. Pergunto-me até onde vou aguentar isso.
O restaurante pertence ao seu cunhado. "É por isso que venho aqui com certa frequência", diz ele, antes de acrescentar, apressado - para que eu não pense em nepotismo --, "mas a comida é boa, o chef é bom, o serviço é bom e o clima é legal." Isso é altamente elogioso para uma cidade agora amplamente reconhecida como a capital mundial da culinária. O Kaika de fato se revela como o local que serviu um dos melhores almoços que comi em anos.
Um garçom de terno preto e gravata-borboleta começa por servir a cada um de nós um broto de bambu grelhado com uma pequena porção, artisticamente arranjada, de molho grosso de soja: "O bambu é de Kagoshima", diz ele, explicando que em meados de março pode-se conseguir bambu apenas naquela região subtropical do Japão. Ele é preparado à perfeição para que o sabor delicado da planta se exale a cada bocado.
Um ano atrás, Mikitani causou rebuliço ao sair da todo-poderosa associação comercial do Japão, o Keidanren. Ele a acusa de apoiar, impensadamente, um setor nuclear caído em desgraça - felizmente, não atômica - desde o acidente nuclear de Fukushima que se seguiu ao tsunami, em março de 2011. O fato de ele ter abandonado o Twitter, perguntando a seus 400 mil seguidores, "Estou pensando em sair do Keidanren. O que vocês acham?" serviu apenas para piorar a situação.
Quando chega nosso segundo prato - sopa fria de cogumelos num copo gelado -, Mikitani me conta sua mudança, em meados da década de 90, do setor bancário para uma empresa estreante de internet. Ele foi uma das 120 pessoas - 117 delas homens - recrutadas para a equipe de via rápida do Industrial Bank of Japan, na época o crème de la crème das finanças japonesas. O banco o enviou para estudar na Faculdade de Administração de Empresas de Harvard, onde ele teve contato com ousadas novas ideias americanas. "Eu sequer conhecia a palavra 'empreendedorismo'", diz ele pronunciando-a foneticamente, como fazem os japoneses quando falam de um conceito estrangeiro. "A primeira vez que a ouvi, pensei: o que é 'empreendedorismo'?"
Embora ele tenha começado a pensar em lançar-se por conta própria, sentiu uma forte obrigação para com o banco que patrocinara seus estudos em Harvard e o lugar em que conheceu sua esposa. O empurrãozinho final ocorreu em janeiro de 1995, com o terremoto de Kobe. "Eu fiquei sentado diante da TV por algo como 12 horas e finalmente eles começaram a exibir os nomes dos que tinham morrido", diz Mikitani, que foi criado naquela cidade portuária. "E vi o nome de meu tio e tia e de muitos dos meus amigos." Depois de prestar ajuda voluntária, ele estava determinado: "Percebi que tudo pode acontecer. Nada é eterno", diz ele. Decidiu dar o mergulho - ou, na rara expressão que usou, "pular da ponte".
O garçom faz deslizar a porta de madeira e entra com o terceiro prato e mais uma explicação precisa. Trata-se, nos diz, de uma pequena fatia de língua, com mostarda, missô e sal de Okinawa. (Os japoneses dão muita importância à origem de seu sal.) Não sou normalmente muito chegado em língua, mas esta é fantástica, com textura delicada e ótima com cerveja japonesa gelada.
Mikitani diz que formou sua empresa "sem VC, sem cabelo grisalho", o que julgo significar sem capital de risco ("venture capital"), sem equipe de direção experiente. Ele cultivou um time enxuto de recém-formados, todos versados em internet e famintos - talvez até literalmente. A ideia evoluiu a partir de um shopping center de internet, e em alguns anos a Rakuten tinha se consagrado como o lugar por excelência no Japão para comprar ou vender produtos on-line. Mais de 35 mil comerciantes povoam atualmente o site.
O modelo não envolve vincular os clientes a uma única grande loja, como a Amazon, e sim fornecer o que Mikitani chama de "experiências individuais de compras". Isso cria a mesma sensação de ligação que "comprar peixe na peixaria de seu bairro", diz ele. "Acho que fazer compras é uma experiência. Não envolve puramente preço ou praticidade." Mesmo as empresas de quimonos de Kyoto, operantes há centenas de anos, foram revitalizadas pelo contato renovado com os clientes proporcionado pelo site, diz ele.
Aparece uma linda salada verde com tempero leve (da península de Miura), servida numa rústica laje de cerâmica branca. Os pratos estão esperando sua vez de aterrissar como aviões. Mikitani fala sobre a grande leva de aquisições da Rakuten no exterior. A empresa comprou recentemente a varejista on-line americana Buy.com por US$ 250 milhões, e a varejista on-line sediada em Jersey Play.com por US$ 39 milhões, ao mesmo tempo em que inaugurou presença no Brasil, na França e na Rússia, entre outros países. No fim do ano passado, desembolsou US$ 315 milhões na leitora eletrônica canadense Kobo, concorrente do Kindle da Amazon.
As empresas japonesas têm um histórico bastante desigual quando se aventuram no exterior, digo eu, mencionando uma série de negócios que entraram em colapso. Isso porque elas agem como empresas japonesas no exterior, e não como empresas globais, emenda ele. Sua investida de anglicização é parte de sua tentativa de erigir uma cultura corporativa internacional. A reunião de segunda-feira de manhã da Rakuten precisa atualmente ser realizada em inglês. Ela até chegou a ser deslocada para a manhã de terça, para facilitar teleconferências com outros fusos horários. Os avisos fixados no elevador são em inglês. Os documentos são em inglês. Idem para os cardápios da cantina, o que obriga o pessoal com menor domínio da língua a pronunciar suas opções para não confundir sua "ca-va-la gre-lha-da" com seu "to-fu fri-to em cal-do le-ve de so-ja".
O garçom começa a servir nosso prato principal. O bom da comida japonesa é que, por mais que você coma, parece ainda haver lugar para mais. Vem uma porção generosa de maminha de alcatra e bife de filé, novamente de Kagoshima, preparado ao ponto e cortado em tiras do tamanho certo para favorecer um uso prático dos pauzinhos. Depois, aspargo de Aichi, no Japão Central, batatas de Saga, em Kyushu, arroz branco e picles. Cada prato é servido numa requintada peça diferente de cerâmica ou charão. Quase não há mais lugar na mesa.
"Se todos os funcionários da Panasonic ou da Sony soubessem se comunicar em inglês, elas podiam estar bem melhor que a Samsung", diz Mikitani, enfiando um pedaço de carne na boca e degustando o sabor. "Uma língua abre os nossos olhos para o 'global', e a pessoa se liberta dessa noção corrente de Japão puro. O inglês é um instrumento que te globaliza, que te faz mudar."
Isso me lembra de uma coisa que o escritor Pico Iyer me contou sobre o Dalai Lama. Toda vez que o líder do budismo tibetano vai ao Japão, é perguntado como o país pode melhorar. Seus fiéis esperam uma resposta na linha de uma contemplação espiritual mais profunda ou de um compromisso mais forte com a paz. Segundo Iyer, o Dalai Lama sistematicamente murcha as expectativas de sua plateia com a admoestação pragmática: "Aprendam inglês."
Mikitani diz que sua campanha na Rakuten tem ramificações mais amplas para o país. "O Japão é tão agradável. Não há criminalidade. A comida é ótima. Tudo está ficando tão barato. Você não precisa aprender outra língua", diz ele, esticando os braços em reconhecimento metafórico do estilo de vida confortável que os japoneses criaram. "Meu argumento é: este é um declínio de longo prazo muito agradável", diz ele, esticando a palavra "declínio" a título de ênfase.
Não questiono sua afirmativa sobre os preços baratos do Japão - pode ser apenas uma manifestação de sua porção bilionário, mas o que questiono é se declínio é uma coisa tão apavorante. Afinal, o Reino Unido está em relativo declínio na maior parte dos últimos 100 anos, mas a qualidade de vida da maioria da população continuou a subir. "Não posso falar sobre o Reino Unido, mas nós precisamos ficar mais competitivos", diz eles. "Não precisamos nos tornar um participante dominante, mas precisamos, sim, ter uma economia saudável para manter tudo isso em movimento."
Em termos empresariais, isso significa ser menos voltado para dentro, sacudir o que alguns japoneses chamam de sua "síndrome de Galápagos", pela qual a sociedade evolui em isolamento, e adotar normas internacionais. "É claro que eu respeito as empresas antigas, mas se você pensar no que aconteceu com as empresas de produtos eletrônicos Sony e Panasonic, comparativamente à Samsung e à Apple, elas obviamente não estão desafiando o suficiente. Elas não têm uma estratégia global."
Dei cabo da minha comida, até os mais míseros pedaços, mas Mikitani deixou sobrando cerca de metade de sua carne. Se eu fosse mais corajoso, teria esticado a mão e pegado. O garçom intervém, tirando os pratos e substituindo-os por sorvete de flor de cereja (para denotar a primavera) e café puro servido em xícaras de tamanho próprio para bonecas.
Mikitani me conta uma história. Algum tempo atrás, Norio Ohga, ex-presidente da Sony e posteriormente presidente da Orquestra Filarmônica de Tóquio, ligou para ele. Queria que Mikitani lhe sucedesse como o presidente da orquestra. Mikitani pensou que ele estava brincando. "Disse a ele que a única música que sei fazer é o karaokê", ri. "Ele respondeu, 'Ô, karaokê é ótima música. Muito boa.'"
Não muito tempo depois dessa conversa, Ohga morreu e Mikitani foi efetivamente nomeado presidente da Filarmônica de Tóquio. "O que eu descobri é que mesmo a orquestra, os músicos, têm um emprego vitalício. Quando ingressam, aos 22 anos, sejam eles bons ou ruins, seu emprego está garantido." Sua conclusão: "Se você é paternalista demais com a mão de obra, perde competitividade."
"Temos de ser mais flexíveis. Manter pessoas mais velhas extremamente caras, quando há muitos jovens muito competentes e capazes, como sistema, é errado." E engole seu café.
Não é pessimista, me garante. Com um inglês melhor, legislação trabalhista mais flexível, políticas de imigração liberais e mais investimentos no campo científico, o Japão poderá se recuperar. "Precisamos corrigir apenas algumas coisas simples para termos um futuro brilhante."
(Tradução de Rachel Warszawski)
Fonte: Valor