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sexta-feira, 9 de março de 2012

Fukushima: o livre arbítrio humano e a energia nuclear

No dia 11 de março de 2011, o mundo tomou conhecimento do tsunami que invadiu a costa nordeste de Japão, atingindo a usina nuclear de Fukushima. Estarrecidos, assistimos pela televisão a ondas enormes de lama cobrindo prédios, arrastando casas, carregando embarcações e carros, engolindo tudo.

O epicentro do terremoto que provocou o tsunami de mais de 10m de altura ocorreu a 130 quilômetros da costa e foi medido em 8,9 graus (escala Richter, um dos mais altos de que se tem conhecimento). Além de 13.300 mortos confirmados e 16 mil desaparecidos, houve rompimento de barragens, incêndios, destruição de plantações, florestas, rodovias, ferrovias, redes de água, o que afetou imediatamente 1,4 milhão de pessoas e todo o sistema elétrico, deixando 4,4 milhões de pessoas sem luz.

A ansiedade do mundo solidário com as vítimas da tragédia e suas famílias em luto transformou-se em admiração ao assistir às demonstrações que se seguiram do espírito comunitário do povo japonês, organizado, disciplinado e dedicado no trabalho coletivo de recuperação e ajuda mútua. Mas continua a angústia provocada pelas consequências do vazamento radiativo da usina nuclear.

O dique de 5,7m de altura não foi suficiente para proteger os reatores atômicos instalados em Fukushima, que sofreram sérias avarias: explosões e incêndios provocaram o superaquecimento das piscinas de combustível irradiado e os reatores se fundiram. Como esclareceu o cientista nuclear Joaquim Francisco de Carvalho: "Os acidentes nucleares têm dimensões que os outros não têm, pois se propagam pelo espaço — continentes inteiros — e pelo tempo — décadas, senão séculos. Um acidente em central nuclear apenas começa no instante e no local em que ocorre". De fato, como em Chernobyl, crianças podem nascer com aberrações cromossômicas e desenvolver leucemia e outras desordens endócrinas e imunológicas, certamente provocadas pela absorção por seus genitores de doses de radiação.

Em Fukushima, as autoridades evacuaram 3 mil moradores num raio de três quilômetros, em caráter de urgência, e, logo em seguida, 45 mil num raio de 10 quilômetros, logo aumentado para 20 quilômetros. Mas e a poeira atômica que vai sendo levada para longe pelo ar e se depositando no gramado do jardim das casas, no pátio das escolas ou retornando ao solo como chuva a molhar as verduras? E o vazamento da água radioativa que chega ao mar e é tragado pelos peixes?

Estive em Fukushima dois meses após a tragédia. Tenho ido ao Japão quase todos os anos, desde 1966, e pude acompanhar o esforço de recuperação dos danos da guerra e do rápido crescimento econômico impulsionado pelo avanço tecnológico, organização social e caráter dedicado do povo japonês. Era natural que isso denotasse certo orgulho e vaidade. No ano passado, pela primeira vez, senti perplexidade e reflexão.

A lição involuntária e não desejada que o Japão está passando ao mundo é muito séria. Em se tratando de um dos países mais ricos do mundo, os equipamentos e edifícios públicos podem ser reconstruídos e as perdas particulares indenizadas. Com a longa tradição cívica e cultural, o povo japonês mostrou ao mundo grande senso de ética social, solidariedade e disciplina.

Entretanto, o monge budista Yoshihiko Tonohira, que esteve no Fórum Social Mundial, sendo convidado a dar uma palestra no Templo Budista de Brasília, afirmou: "Tenho a convicção de que a convivência da humanidade com a energia nuclear é incompatível". Não estava questionando tecnicamente a energia nuclear, mas, como budista, chamando a atenção para a fragilidade do livre-arbítrio humano, que pode fugir do controle da boa consciência. E falava, não com raiva pelos antecedentes de Hiroshima e Nagasaki, mas de coração partido, pois vinha recebendo, na sua pequena cidade no interior da província de Hokkaido, no extremo norte do Japão, os refugiados da tragédia, que não paravam de chegar.

Por seu lado, o cristão Chico Whitaker, um dos organizadores do Projeto Ficha Limpa, idealizador do Fórum Social Mundial, ganhador do Prêmio Nobel Alternativo por sua luta incessante a favor da justiça social, no texto que apresentou especialmente ao Conselho Episcopal Pastoral Católico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), disse sobre a questão: "O desastre ocorrido no Japão como que despertou o mundo para a questão nuclear. Foi como se Deus nos tivesse enviado um recado a nós, pobres seres humanos: cuidado com a tentação de se considerarem deuses..."

Essa reflexão vale para todos, religiosos ou não. Vários eventos estão sendo programados por todo o mundo por ocasião do primeiro aniversário da tragédia de Fukushima. A questão não deve ser discutida somente do ponto vista técnico, científico ou econômico, mas essencialmente humano. Ou melhor, devemos refletir seriamente sobre as repercussões do técnico, do científico e do econômico sobre o humano.

Começaremos em Brasília e convidamos todas as correntes de pensamento, independentemente da sua crença, para batermos juntos o badalo da paz, cuja energia produzida correrá o mundo. É o verdadeiro espírito ecumênico.

(Correio Braziliense)